“E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra e soprou em seu nariz o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente. E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, no lado leste, e pôs ali o homem que tinha formado. E o Senhor Deus fez brotar da terra toda árvore agradável à vista e boa para comida”.
Assim é retratado o Jardim do Éden no primeiro livro da bíblia, Gênesis, que descreve a origem do universo e o local paradisíaco onde Adão e Eva foram colocados. Tal paraíso, apesar de pouco caracterizado nas palavras originais, há séculos povoa a imaginação dos fiéis e demais entusiastas do assunto. As cenas desse lugar idílico, reforçadas pelas pinturas e esculturas criadas ao longo tempo, apresentam uma paisagem tida como ideal, uma natureza edênica, expressada muitas vezes pelo colorido vibrante e sem contorno – tal qual um quadro de Monet –, enfatizando provavelmente a representação do mundo espiritual, onde a imagem é vista através do contraste de cores, sombras e luzes.
Nesse sentido é possível perceber que, não à toa, religião e natureza têm caminhado juntas ao longo dos séculos, entendendo o ambiente natural como espaço sagrado e soberano, como o mais próximo de Deus que se poderia chegar.
Entretanto, enquanto algumas religiões mantem a natureza apenas no imaginário dos livros sagrados, um peculiar grupo religioso do norte da Etiópia estabelece uma relação intrínseca com o entorno natural que obrigatoriamente envolve cada uma das suas igrejas. Segundo o World Council of Churches, a Igreja Ortodoxa Tewahedo, dominante na Etiópia, possui cerca de 40 milhões de seguidores e sua fé tem sido fundamental para proteger as florestas nativas que ainda restam no país.
Suas estruturas sagradas feitas, na grande maioria, com materiais advindos da própria natureza, são envoltas por florestas — partes cruciais dos ritos religiosos. Segundo a crença, para ser uma igreja, a edificação deve ser envolvida por uma floresta que, por sua vez, materializaria o Jardim do Éden, onde cada planta, cada animal é uma benção de Deus. Essa arca viva da biodiversidade simbolizaria o paraíso e acolheria todos os fiéis, mas não só isso, sua importância também é creditada por ser a morada dos eremitas, figuras espirituais sagradas que vivem escondidas nas florestas e que, em suas orações, intercedem em nome de toda a humanidade.
Estima-se que em 1900 as árvores cobriam aproximadamente 40% da Etiópia, porém, à medida que a agricultura se expandiu, suas florestas foram substituídas por campos de cultivo. Hoje em dia, resta apenas 5% de cobertura vegetal em todo o país e sua localização coincide com os fragmentos de floresta espalhados pelas cerca de 1500 pequenas manchas verdes que abrigam essas igrejas.
Essas porções de floresta variam de tamanho conforme o acordo que se estabelece entre a comunidade e os padres. Na sua organização formal, as igrejas da tradição ortodoxa etíope herdaram muitos fundamentos dos espaços sagrados do judaísmo. Por isso, no centro da igreja, assim com o centro metafórico do tempo judaico, repousa o tabot, uma réplica da Arca da Aliança, descrito na Bíblia como o objeto em que as tábuas dos dez mandamentos e outros elementos sagrados teriam sido guardados. A santidade do tabot irradia para fora, de modo que, quanto mais próximo se estiver da igreja, mais sagrado será o espaço. As florestas, portanto, fazem parte desse raio sagrado de dimensões variadas, podendo abarcar uma floresta com centenas ou até milhares de hectares.
O volume que abriga o tabot, ou seja, a igreja propriamente dita, apresenta geralmente uma cobertura redonda, com molduras de portas e vigas feitas de zimbro. Para além da edificação central, outro círculo ondula em direção ao espaço externo, criando um pátio circular delimitado por um muro. Segundo a tradição, a distância adequada deste muro em relação à igreja deve ser a envergadura de quarenta anjos. Essa espécie de pátio interno já anuncia a sacralidade que está se aproximando, por isso, muito fiéis fazem gestos de reverência ao cruzar tal limite
A aura sagrada é, por fim, complementada pela vegetação nativa que traz o barulho dos pássaros, o farfalhar das folhas e a umidade da terra para dentro dos ritos religiosos. Adentrar a floresta significa pisar em um local etéreo, com uma atmosfera pacífica e silenciosa. Sensações vivenciadas não só na mente, mas no próprio corpo, já que o clima quente da Etiópia é amenizado instantaneamente quando se percorre a floresta.
Essa natureza sagrada, porém, está sendo ameaçada pelo avanço crescente das plantações agrícolas que insistem em tomar os 5% de floresta nativa que restam. Essa situação foi comprovada por meio de um acompanhamento via imagens áreas que alertou para a diminuição das áreas verdes. Alemayehu Wassie Eshete, ambientalista etíope, tem dedicado sua vida a estudar e proteger essas florestas e dele surgiram as primeiras iniciativas. Eshete foi uma criança que cresceu visitando semanalmente uma dessas igrejas, por isso, reflete no seu trabalho o apego emocional às histórias que viveu por entre essas árvores. Com um trabalho delicado de conscientização da comunidade – segundo ele, a parte mais difícil do projeto –, Eshete e sua equipe já conseguiram proteger 20 florestas de igrejas com uma solução muito simples: construir pequenos muros de pedra que demarcam as florestas, inclusive, em alguns casos, expandindo um pouco o perímetro e permitindo que a vegetação ocupe naturalmente mais espaço. A ideia teve grande aderência principalmente porque usa o molde da parede interna circular sagrada e o replica estendendo assim a teia invisível da santidade ao incluir toda a floresta.
Segundo Fred Bahnson, em um longo ensaio que acompanha o filme The Church Forests of Ethiopia, de Jeremy Seifert, esse esforço de preservação, que envolve cientistas, padres e comunidade surge não apenas da crença no poder espiritual da natureza, ou da importância que ela tem como abrigo, como fonte de medicamentos naturais e nascentes de água, mas, sobretudo, do poder que as florestas têm de nos fazer sonhar, de serem parte da nossa imaginação, da nossa ideia idílica de paraíso, onde conseguimos enxergar além do visível.
Como exemplo de resiliência, essas igrejas e suas florestas resistem ao tempo num contexto de exploração desenfreada da natureza. Nesse momento, em que muito se fala sobre a importância da preservação, elas atestam o poder da fé na criação de paisagens sustentáveis pelo encontro entre homem e natureza.